quarta-feira, 28 de junho de 2017

Você que não conheço mais

Quando ele chegou meu coração se atentou como sempre, não sabia ainda que estava sozinho e por isso estava meio tensa, mas antes que eu percebesse, ali estava ele procurando meu rosto, com um tapinha no ombro para me cumprimentar... uma formalidade que hoje em dia é o que temos, mas confesso que me remeteu às nossas manhãs de tempos atrás, quando ele simplesmente surgia com o rosto na minha frente aguardando um beijo. E desde aquela época ele é melhor do que eu nesse aspecto, percebi.
Engraçado o dia, coincidência talvez, porque eu estava esperando que ele estivesse acompanhado e errei, pela segunda vez, na mesma ocasião sei lá quantos anos depois.
Me forcei a não olhar muito pra ele, mas pude perceber as mudanças de longe, em silêncio a princípio, fingindo naturalidade ou uma superioridade que na verdade não existe. Tive a impressão de que ele se esquivava, que trocou o lugar pra ficar mais distante de mim, como se não pudéssemos mais ficar próximos, o vi sentando no fundo de propósito, com alguém impedindo o contato dos nossos olhos, o vi se encolher
Mas a medida que as pessoas iam embora fui me aproximando, àquela altura estávamos praticamente entre amigos e pude me soltar mais, puxar um assunto... conforme conversávamos me lembrava de alguma coisa que queria contar ou lembrar, falava de coisas do passado incessantemente. Meu euforismo beirava o ridículo, falando mais que de costume, levantando a voz, tentando chamar a atenção dele de alguma forma, acho que o cutuquei uma vez forçando sua memória. Os olhos dele então vagaram em outra direção se esforçando e voltaram pra mim por meio segundo, perdidos... varias vezes naquela noite. Em alguns momentos, ele se lembrava, dizia que fazia muito tempo, surpreso, em outros, ele apenas silenciava e eu procurava no seu rosto alguma resposta, mas não havia nada. 
Era evidente que, para ele, aquilo parecia ter acontecido em outra vida, e de fato havia acontecido, mas sua memória era rarefeita demais. Aquilo me irritava, mas não podia conter o impulso de falar com ele coisas que achei que nunca mais teria a oportunidade de falar, mesmo que fossem coisas banais. Esperava a velha gargalhada, a sinceridade de antes, ou um comentário qualquer sobre as coisas que estávamos conversando, alguma palhaçada que ele sempre fez, algum sinal de que ele se lembrava da época em que éramos amigos.
Mas ele mudou tanto... Ele não me encara mais, só o faz quando é estritamente necessário, rapidamente e parecia não se interessar muito pelas coisas que eu contava, mesmo sendo algo referente a nós dois, estava aério, desviava os olhos enquanto eu falava, não sei se de propósito, ou não. Seu sorriso mudou, o jeito de se vestir está diferente, a barba crescida, o cabelo mais ralo, mais magro... mas, tirando tudo isso, sua expressão é preocupada, é distante. O riso largo, fácil, os olhos brilhantes apertados... Sumiram. Ele é outra pessoa, pelo menos comigo e eu nunca imaginei que um dia não reconheceria nada nele, aquilo me chocou.
Cheguei em casa ainda confusa, processando esse reencontro, sem saber se estava feliz por termos tido esse pequeno tempo em meio a imensidão de anos que passamos e passaremos sem trocar mais do que um cumprimento, ou triste pelo jeito estranho que ele me tratou, furiosa por ter devolvido um abraço com três palmos de distância que ele me deu, por não ter dito nada quando nos despedimos... quando cheguei em casa me dei conta de que queria chorar e chorei. 
Mas hoje me toquei, que perdemos a conexão e que nada do passado vai fazer mais sentido pra ele. O coração se esforça pra lembrar, mas não faz sentido. Talvez nossa amizade, ou pelo menos a lembrança dela, dependa da outra parte que fomos, mas não somos mais, nós somos outros e por isso seja estranho, seja distante o contato. E não sei se me decepcionei mais com ele ou comigo mesma, porque achei que nos faltava apenas a oportunidade, que com a primeira lembrança nossa do passado aquele sorriso surgiria, o reconhecimento estalaria por dentro e a luz dos olhos dele acenderiam outra vez, numa gargalhada aberta ou mesmo numa conversa silenciosa que tantas vezes soubemos ter.   
Os tempos são outros, e nada se acendeu. Não posso esconder a frustração, sabia que um dia minha função seria trazer algum momento do passado para que ele (me) reconhecesse, porque sempre foi assim, ele nunca lembrava de nada até eu contar com detalhes e então ele ria com os olhos quase fechados, o sorriso aberto, leve e fazia algum cometário, alguma brincadeira... e eu ainda consigo ver essa risada na minha mente. Mas ele não ri mais assim, não pra mim, é como se ele não se lembrasse de mim. Fiquei ali diante dele, como a companheira de um alguém com Alzheimer que aguarda um momento de lucidez, escolhendo uma história do passado que desse vida àquele sentimento outra vez, mesmo que por alguns segundos... mas nada aconteceu, a lucidez não veio. 
Sei que não vejo mais aquele brilho em mim, que a vida hoje é fosca, sem as cores de todas as oportunidades que tínhamos, toda a infinidade de caminhos a nossa frente, quando tudo era simples e ilimitado... hoje é preto e branco, atos e  consequências.  
Acredito que isso aconteceria de uma forma ou de outra, mesmo que não tivesse partido de mim, o fim seria esse. E ele ainda é tão especial pra mim, o sentimento de carinho perdura apesar de não termos mais nenhuma ligação, de não sermos mais os mesmos... porque a consciência não muda esse fato, a consciência não torna isso fácil ou melhor...É triste, triste mesmo entendendo e dói. Eu só não tinha me dado conta disso, porque também nunca havíamos tido essa oportunidade de conversar outra vez e me partiu ao meio chegar a essa conclusão, mesmo quando já nem sabia que havia algo aqui em relação a ele que pudesse ser quebrado. Mas acho que agora foi o último pedaço.